domingo, 9 de janeiro de 2011

Uma tragicomédia carnavalesca

            Satanás. Assim era conhecido um negro de 1m98 de altura, morador do Morro da Mangueira, ex-lutador de boxe como atestava seu nariz quebrado e seus dois caninos reconstituídos a ouro. Atualmente um gari da Comlurb.
            Seu codinome era por causa dos muitos nocautes aplicados e seu temperamento explosivo. Seu nome verdadeiro (do qual tinha vergonha desde a infância) era Digo Pedro, ocasionado por um erro na hora do seu registro.
            O funcionário do cartório, novato, errara começando a escrever PRE, percebendo o erro parou e perguntou ao companheiro:
            — O que eu faço?
            Este respondeu: — Escreva digo e então o nome certo. Assim foi feito. Satanás pagou por este erro durante sua existência, desde a escola com as chacotas e no exército com as gozações do sargento.
            Alfredo, outro morador do morro, era o dono de um raro Ford Bigode conversível que ele tratava com extremo cuidado. Através dele conseguia contratos com estúdios de TV e de cinema. Ele mantinha o carro guardado na base do Morro da Mangueira em uma concessionária que o exibia como chamariz para clientes.
            Isabelita dos Patins era assim chamada por ser exímia patinadora, o que lhe valera um emprego no Carrefour, quando da sua inauguração. O seu trabalho consistia em recolher os itens recusados pelos clientes no caixa e recoloca-los nos seus devidos lugares. Assim como ajudar os compradores a carregar os carrinhos cheios até o estacionamento ajudando-os a colocar as compras em seus carros, o que lhe rendia boas gorjetas. Ela não morava na Mangueira e sim no Salgueiro, mas nos fins de semana era sempre passados na Mangueira em casa de sua avó.
            Cupido era um cearense franzino que vivia vestido de mulher. De cabelos encaracolados e oxigenados, não escondia sua declarada feminilidade. Era muito amigo e protegido por Pandora. Esta outra moradora da Mangueira. Seu casebre era de uma só peça dormitório, sala, cozinha e banheiro. Este consistia numa cadeira de assento redondo do qual ela retirara a palha, tendo embaixo um penico de ágata verde musgo com enfeites de flores. Este fazia parte de um conjunto de bule e caneca. Ela fazia a maquiagem das drag queens e das putas, além de outras. Sua caixa de madeira com alça continha seus batons, seus cremes, seus rouges, seus cílios postiços e otras cossitas más.  Enfim, todo material necessário para uma boa maquiagem.
            Entre a porta e o telhado de zinco do casebre havia uma madeira escrita com grafite preto: ÇALÃO CECILYA.
            Quando chamavam sua atenção que salão não era com cedilha, ela dizia gostar mais deste C com cedilha pendurada do que com S e a razão do Y era por achar que isto dava um tom de nobreza a seu nome (como a Lady Di).
            Ela tomara para si a proteção de Cupido, passando a ser sua defensora principalmente contra Satanás que tinha ganas e implicava muito com este.
            Era domingo de Carnaval. Alfredo tirara o carro da garagem, abaixara a capota e mal fizera isto, Cupido já estava encarapitado, rebolando ao som das marchas de Carnaval que saiam de um auto falante instalado por um eletricista amigo do Alfredo.
            Pandora tirou de dentro de sua caixa um saquinho plástico, onde enfiou a mão trazendo-a cheia de confete, logo espalhando sobre a cabeça dos ocupantes do carro. Também tirou de lá um rolo de serpentina que junto com Isabelita jogavam uma para outra fazendo com isto uma decoração.
            Entraram no trânsito e seguiram lentamente para Ipanema. Cupido não parava quieto, cantava, rebolava... Os ocupantes dos ônibus vinham todos para as janelas para vê-lo. Ele então virava a seu traseiro metido em uma sunga preta com um coração vermelho que causava furor na platéia.
            Satanás cada vez mais irritado tentava dar chapoletadas no assanhado Cupido. Mas Pandora o ameaçava com sua caixa e Satanás se continha com certa dificuldade.
            Chegando ao Arpoador, ficaram atrás dos músicos da Banda do Banho de Mar a Fantasia. Os carnavalescos a esta altura numerosos, prosseguiam devagar atrás do carro que seguia na pista fechada ao tráfego. A garotada da praia correu para assistir aquela cena enquanto os turistas tentavam imitar os passos de samba sem sucesso.
            Isabelita aproximava-se dos turistas e mostrava sua bolsinha pendurada ao pescoço querendo induzi-los a soltar algumas verdinhas. O que conseguiu, inclusive a inacreditável nota de 10 dólares, a qual ela rapidamente destacou das outras e guardou em seu soutien.
            Alfredo foi até o fim da praia e retornou procurando uma vaga no canteiro central entre os ônibus ali estacionados, o que conseguiu.
            Isabelita entrou em uma transversal e pouco tempo depois voltou com um saco pardo manchado de gordura e colocou ao lado de Pandora. Esta tirou da sua caixa um pedaço de cortina de box que estendeu no chão. Colocou o saco rasgando este e retirando uma galinha assada em pedaços. Na mesma hora Alfredo pegou as sobrecoxas, Isabelita e Pandora dividiram o peito, sobrando para Cupido o que ele mais gostava: as asinhas esturricadas e a sambiquira.
            Isabelita também trouxe um saco plástico com seis latas de cerveja. Pandora rapidamente com extrema habilidade pegou uma das latas e guardou em sua caixa. As outras latas foram distribuídas com o resto do grupo.
            Depois do almoço ficaram esperando a Banda de Ipanema que já começava a se formar na Praça General Osório com um número enorme de seguidores.
            Cupido voltou a ficar excitado e logo pediu a Alfredo para carregá-lo no ombro; Satanás fechou a cara e ameaçou dar uma chapoletada em Cupido, mas notou que Pandora o ameaçava com sua caixa. Satanás se controlou e quando os músicos da banda (passaram) logo entraram seguindo a banda.
            Cupido continuava excitadíssimo no ombro de Alfredo e inesperadamente Satanás deu um murro em Cupido jogando-o ao chão.
            Enquanto Pandora cuidava de levantar Cupido, Isabelita e Alfredo discutiam com Satanás, mas este ameaçava bater mais em Cupido.
            Pandora sorrateiramente abriu uma fresta de sua caixa, meteu a mão e tirou de lá uma peixeira. Quando Satanás avançou, ala enfiou a lâmina em sua barriga levando-a até sua garganta.
            Alfredo e Isabelita se juntaram a Santanás evitando que ele caísse ao chão e o arrastaram para a beira da calçada até uma árvore onde o sentaram apoiado no tronco.
            Pandora, que acompanhara os dois amigos, limpou a lâmina na roupa de gari de Satanás, guardou a peixeira novamente na caixa tirando de lá a lata de cerveja que havia surrupiado. Abriu-a e deu dois longos goles e a colocou nas mãos de Satanás. Mais uma vez retirou da Caixa uma peruca de papel celofane verde e colocou na cabeça de Satanás escondendo um pouco seu rosto.
            O grupo se reuniu rapidamente de volta ao Ford Bigode. Alfredo levantou a capota, eles entraram e rumaram de volta ao Morro da Mangueira.
            O carnaval para eles estava terminado. Lá na Mangueira no barraco de Satanás passaram o resto de dia confabulando o que deveria ser feito. Resolveram finalmente que na quarta-feira de cinzas iriam ao Instituto Médico legal procurar se haviam achado o corpo de Satanás.
            Uma vez lá na terceira gaveta que o funcionário abriu, puderam ver na ponta do lençol que o cobria um pedaço da peruca e quando o funcionário o descobriu, informaram ser esta a pessoa que procuravam
            Foram indagados se eram parentes, mas negaram e disseram ser somente vizinhos no Morro da Mangueira, onde o morto também vivia e pelo que sabiam ele não tinha nenhum parente.
            Foram informados que neste caso em geral o corpo é enterrado em vala comum e eles concordaram.

            E esta é mais uma tragicomédia carnavalesca acontecida nessa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro que dizem ser uma Cidade Maravilhosa.


Marina V. Medeiros

sábado, 1 de janeiro de 2011

Mentiras

Dizes que eu minto,
Mas não vês a razão
Não queres perceber
Não sabes o que sinto
Ou, se sabes, dizes que não.

Se acaso é mentir
A tudo negar
Para que viver
Não seja amargar,
Então confesso:
A vida ensinou-me a mentir.

Se acaso é mentir
Dos outros escconder
A magoa que fere
O vazio que atordoa,
Então confesso:
O coração ensinou-me a mentir.

Se acaso é mentir
O amor aceitar
A carícia retribuir
E o ódio calar,
Então confesso:
Tu me ensinaste a mentir.


Marina V. Medeiros