quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A CASCA , O 1 E O 2


            Estamos no CTI infantil. O médico está muito preocupado com uma das enfermas. Sua temperatura está 41 graus .  Ele verifica assiduamente, através de um espelho colocado em frente ao seu nariz se ainda há alguma respiração. A enferma quando criança conversava muito com outras pessoas. Sua mãe, muito preocupada, em uma das visitas ao pediatra, relatou este episódio. O médico sossegou-a dizendo ser muito comum as crianças inventarem amigos ocultos com os quais dividiam os seus temores, assombramentos etc.
            Isto era como se houvesse uma dupla personalidade, o que na verdade não era assim. O que acontecia é que ela conversava com ela mesma como se fosse com outra personalidade ou o desdobramento de sua própria, a qual ela denominava ou 1 ou 2.
            Neste momento o 1 estava dizendo aos 2, a casca está muito mal (a casca era a doente). O doutor estava tão preocupado e não confiando no estetoscópio, então encosta o ouvido no peito dela.
            Nessa hora o 2 diz:
            — Nós vamos fazer um BUHUHUHUH, está bem? Olha está na hora!
BUHUHUHUH!!!!!!!
            — O que houve, pergunta o 2, cadê o doutor?
            — Acho que matamos ele. Ele estava no chão sem se mexer... agora está engatinhando de costas, saindo pela porta e tentando falar alguma coisa... Agora escutei, está tentando dizer socorro... socorro... socorro... Agora estão sentando ele em um banco, estão dando café ou acho, água com açúcar, mas ele está tremendo muito, pedindo para ir para casa, que o ponham em um táxi.

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            O 1 chama o 2 e pergunta:
            — Aonde que a gente está?
            — Eu acho (o 2 respondendo) que a gente está dentro de um caixão, e pelo jeito a casca morreu. Tem muita gente na sala e tem flores no caixão que estão me espetando o rosto. Só espero que ninguém traga cravos de defunto... Se trouxerem e puserem em cima de nós, sabe o que acontece, né? Nós temos alergia a cravos de defuntos.
            — Olha tem uma mulher trazendo uma cruz, feita com cravos de defunto e está pondo em cima de nós.
            — AT...
CHIM!
            — 2, o que aconteceu?
            — Está todo mundo querendo sair ao mesmo tempo da sala, pela única porta que existe.
            2 o que aconteceu com a mulher dos cravos? Ela parece que vai desmaiar, está branca como um papel e... está se mexendo.

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            Um padre entra na sala com um baldezinho de água benta, do qual derrama um pouco em cima da mulher que continua dizendo:
            — O cadáver espirou!!!!
            O resto da água benta ele joga dentro do caixão, pedindo aos funcionários da Santa Casa que estavam presentes, para fecharem o caixão. Depois ele acelera o sepultamento e quando o caixão desce na sepultura ele pronuncia uma oração em latim e a termina dizendo:
— Descansem em paz, amém.
            Por que usar o verbo no plural? Será que acha que há algum trabalho de demônios por aqui?

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            O médico ateu empedernido, agora é um carola fervoroso, inclusive passou a viver em um convento.
             A mulher dos cravos está sendo conhecida como a mijona pelos seus vizinhos do prédio. Está sendo tratada por seu médico clínico e por um psiquiatra porque não pode escutar ninguém espirrar, que sua bexiga deixa escapar urina.
             O psiquiatra da casca que guardava suas sessões com a falecida, revendo-as pensou em fazer um relatório ao conselho médico sobre a existência do 1 e do 2. Mas pensou bem no assunto e ficou com receio que ele próprio fosse colocado no Pinel.


Marina V. Medeiros

Um comentário:

  1. Parabéns vó, um texto de muita personalidade !!
    Continue assim, mil beijos.
    Mateus.

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